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Mulheres Maculadas e o Medo das Sombras

Foto do escritor: Vesta N.O.X.Vesta N.O.X.

Atualizado: 22 de jan.

Atenção: esse texto contém spoilers do filme Nosferatu (2024) e da série Penny Dreadful





Robert Eggers repetiu o feito. O grande cineasta de terror da nossa geração trouxe à tona com sua rendição de Nosferatu um tema que explora muito bem: as amarras sociais e a selvageria do ser humano, desta vez por um ponto de vista diferente dos longas anteriores.

A versão de Eggers impressiona com o preciosismo histórico dos detalhes e das escolhas alegóricas, milimetricamente calculadas. Contudo, a inovação mais substancial, e talvez a mais relevante, seja a ressignificação de Ellen Hutter na narrativa: de mera donzela manipulada a grande bruxa castrada pela sociedade cristã. Tema esse já é soberbamente retratado em seu primeiro filme, A Bruxa, e ecoa tantas outras produções audiovisuais que exploram sobretudo a era vitoriana e o boom espiritualista daquela época, a exemplo da brilhante série Penny Dreadful e sua icônica protagonista, Vanessa Ives.


Ellen Hutter, Vanessa Ives e o tesão satânico da mulher vitoriana


Antes de adentrarmos esta análise, é preciso trazer alguns pontos essenciais na história da Mina Murray de Drácula, da Ellen Hutter do Nosferatu original (de 1922) e da extraordinária reconstrução da personagem no Nosferatu de Eggers.

Drácula foi escrito por Bram Stoker, uma figura muito interessante. Stoker trabalhou majoritariamente no mundo do teatro, convivendo com uma comunidade efervescente e fora do padrão na Londres do final do século 19. Ele dedicou décadas de sua vida aos estudos folclóricos, sobretudo dos vampiros, mas, em suas crenças pessoais, mantinha-se em um ocultismo ascético, baseado nos ideais iluministas difundidos então. Para Stoker, a ciência deveria sempre estar em primeiro lugar, renegando a sabedoria popular, tida como mera superstição, assim como as experiências paranormais, que seriam parte muito relevante da jornada ocultista. Nunca admitiu publicamente ser membro da mítica Ordem Hermética da Aurora Dourada, mas, no mínimo, andava entre os membros, sendo amigo íntimo de alguns deles e certamente foi influenciado pelas ideias e crenças da Ordem, que inclusive também perseguia o ideal de confluência entre a espiritualidade e o iluminismo.


Bram Stoker
Bram Stoker

Uma das crenças de Bram Stoker era o mesmerismo, nome do movimento criado pelo médico alemão Franz Mesmer (guarde este nome), que acreditava no magnetismo animal, segundo o qual todos os animais, incluindo o homo sapiens sapiens, possuiria um tipo de energia magnética particular, podendo esta ser manipulada para influência energética benéfica ou maléfica. Foi um dos primeiros movimentos da época a tentar casar ciência e fenômenos paranormais. A principal influência do mesmerismo foi Paracelso.

Aqui já é possível notar que Stoker provavelmente utiliza desta teoria em seu romance, pois o Conde Drácula consegue influenciar e adoecer Mina e outras pessoas, mesmo a milhares de quilômetros de distância, despertando uma série de instintos que fazem esses indivíduos escaparem completamente à norma vitoriana. Drácula é, nesse sentido, uma espécie de conto moral, uma fábula para adultos, alertando sobre os perigos de sucumbir às sombras, de esquecer os valores sociais e a pureza cristã para assumir o profundo da psique, dar vazão à pulsão sexual e entregar-se ao suposto caos que sucede a tais atitudes.

À mulher vitoriana cabia um lugar social profundamente castrador. Devemos lembrar que a perseguição às mulheres, conhecida como caça às bruxas, promovida pelo cristianismo tinha acabado há menos de 200 anos, sendo uma ferida ainda praticamente aberta em termos históricos. Dali se sucedeu uma série de normas restritivas às mulheres, sobretudo no que concerne ao controle reprodutivo dos corpos femininos.  Isso fica bem claro no manual por excelência da Inquisição, o Malleus Maleficarum, que inventa justificativas falaciosas para “explicar” por que as mulheres seriam mais suscetíveis ao trabalho do diabo e por que elas precisariam, supostamente, de controle, punição e comando:


Outros têm ainda proposto muitas outras razões para explicar o maior número de mulheres supersticiosas do que de homens. E a primeira está em sua maior credulidade; e, já que o principal objetivo do Diabo é corromper a fé, prefere então atacá-las.(...)

A segunda razão é que as mulheres são, por natureza, mais impressionáveis e mais propensas a receber a influência do espírito descorporificado (...)

A terceira razão é que, possuidoras de língua traiçoeira, não se abstém de contar às suas amigas tudo o que aprendem através das artes do mal; e por serem fracas, encontram modo fácil e secreto de se justificarem através da bruxaria. (...)

Mas a razão natural está em que a mulher é mais carnal do que o homem, o que se evidencia pelas suas muitas abominações carnais. E convém observar que ocorreu uma falha na formação da primeira mulher, por ter sido ela criada a partir de uma costela recurva, ou seja, uma costela do peito, cuja curva é, por assim dizer, contrária à retidão do homem. E como, em virtude dessa falha, a mulher é animal imperfeito, sempre decepciona e mente. (...)

Portanto, a mulher perversa é, por natureza, mais propensa a hesitar na sua fé e, consequentemente, mais propensa a abjurá-la - fenômeno que conforma a raiz da bruxaria.

(MALLEUS MALEFICARUM, Questão VI. P. 123 e 124)


Dessa forma, qualquer desvio de uma estrita conduta baseada nas virtudes cristãs e na pureza do corpo era visto como demoníaco.  É interessante entender como, à luz da história simbólica, a Inquisição é uma força gigantesca de transformação do self coletivo. Até hoje sofremos as consequências desses movimentos, com as mulheres ainda sendo julgadas como putas e vagabundas apenas por viverem suas sexualidades tal qual os homens fazem. Ainda hoje, a maioria esmagadora dos filmes, séries e livros sobre possessão demoníaca terão como personagens possuídas meninas e mulheres, ecoando esse inconsciente coletivo construído de forma cruel e calculada.

Na era vitoriana, isso, de certa forma, se converte no discurso iluminista e “científico” da época na qual há uma realocação da vigilância feminina da igreja para a medicina. Ali, a mulher que é dominada por seus impulsos sexuais ou que se deixa levar por seus reais desejos de ser vista como um ser humano passa a ser diagnosticada com histeria, uma condição inventada pelo patriarcado, que podia classificar desde mulheres que causavam transtornos para outras pessoas (com toda a abertura para o controle extremo que cabe em um conceito vago como este) até sintomas sérios, como ansiedade, falta de ar, desmaios, insônia e falta de apetite, passando pelo temido tesão feminino. Aliás, estes também ecoam a podridão da Inquisição, que menciona a mulher que assume seu desejo sexual como a mais propensa a ser noiva do Diabo:


Cumpre dizer, conforme se demonstrou na questão precedente, que três parecem ser os vícios que exercem um domínio especial sobre as mulheres perversas, quais sejam: a infidelidade, a ambição e a luxúria. São estas, portanto, mais inclinadas que as outras à bruxaria, por mais se entregarem a tais vícios. Como desses três vícios predomina o último, por serem as mulheres insaciáveis, etc., conclui-se que, dentre as mulheres ambiciosas, as mais profundamente contaminadas são as que mais ardentemente tentam saciar a sua lascívia obscena: as adúlteras, as fornicadoras e as concubinas dos poderosos.

(MALLEUS MALEFICARUM, Questão VI. P. 129)


Milhares de mulheres foram forçosamente medicadas, presas em suas casas ou confinadas em hospícios. Muitas foram submetidas a procedimentos absurdos, como histerectomia, choques elétricos e lobotomia. Tantas outras foram estupradas e assediadas pelos ditos médicos, que performaram “massagens” e “técnicas” similares nos órgãos sexuais de suas pacientes. É importante ressaltar que tais práticas foram comuns até os idos da década de 1950 no ocidente, portanto menos de 80 anos atrás. Há um peso simbólico de tudo isto ainda ardentemente vivo no inconsciente coletivo do presente. Algo que ainda levará muito tempo para ser desconstruído, se de fato for algum dia.


Vanessa Ives internada em um manicômio. Temporada 1 de Penny Dreadful.
Vanessa Ives internada em um manicômio. Temporada 1 de Penny Dreadful.

Em Drácula, vemos o controle do vampiro na desvirtuação de suas vítimas, sobretudo as mulheres - mais suscetíveis -, que passam a usar os cabelos soltos, desamarrar os espartilhos e dar vazão a todo o desejo sexual reprimido em toda uma vida. A fome por sangue e por sexo é a epítome da depravação e em Drácula vemos uma verdadeira corrida em direção à luz e à salvação da donzela tola e incapaz de agir sozinha, personificada em Mina. 



Ellen Hutter na versão de Robert Eggers
Ellen Hutter na versão de Robert Eggers

O Nosferatu original de 1922 basicamente elimina a parte feminina da narrativa, mas a

nova adaptação de Eggers retoma o feminino de forma absolutamente genial. Neste filme encontramos uma Ellen Hutter que incomoda, desconcerta e causa repulsa a seus amigos a partir de sua possessão e atitude totalmente desvirtuada. Aprendemos que Ellen sempre foi atormentada por uma grave melancolia e sempre teve contato com outras forças para além deste plano. A partir do amor - e do sexo - com seu marido, Thomas Hutter, ela fica “curada” e “bem”. Aqui podemos fazer uma leitura muito profunda do que acontece com ela: estar “bem” na era vitoriana significava, na verdade, conformar-se a uma existência presa, mantida no cabresto patriarcal. Ellen finge pertencer, mas no fundo sabe que é diferente. Ela representa uma espécie de limiar entre-mundos, sendo na verdade a contrapartida de Nosferatu, que também está no mesmo limiar, entre a vida e a morte; entre a luz e a sombra. Ela é sensitiva, comunga com espíritos. Ela é chamada de Sílfide pelo seu segundo médico - professor e ocultista, o Dr. Von Franz (lembra-se do nome? Esta não é a única referência do Von Franz, acredito que a grande Marie Von Franz também é homenageada aqui). Elemental do reino do ar, a Sílfide é criação de Paracelso também, vemos aqui uma união de elementos em homenagem a este grande nome do ocultismo ocidental, mas isso é assunto para outro ensaio.

O "mago negro" Nosferatu é quem responde às preces desesperadas de Ellen.
O "mago negro" Nosferatu é quem responde às preces desesperadas de Ellen.

A Ellen de Eggers tem agência. Compreende de certa forma que é diferente, atormenta-se por não ser capaz de performar o que se espera dela, prende-se desesperadamente ao marido como tábua de salvação, mesmo se sentindo profundamente insatisfeita. Já no início do filme, ela clama por uma presença energética que a acompanhe, que a guie, que a abrace. No entanto, por seu desconhecimento dos Mistérios, ela acaba sendo imprudente neste chamado e respondida por um espírito maligno, um antigo mago negro e putrefato. 

Existe, entre o casal principal, um jogo de poder e paixão no qual Thomas se deixa levar pelo papel de salvador da jovem ao mesmo tempo que é também um algoz social de todo o potencial daquela mulher. O professor Von Franz reconhece o enorme poder espiritual de Ellen, chegando a dizer que ela seria uma grande Sacerdotisa de Ísis, se vivesse em outros tempos em que sua sensibilidade mediúnica e pulsão sexual pudessem ser utilizados para o caminho espiritual dela mesma e de sua comunidade. No passado, as Sacerdotisas das Grandes Deusas da fertilidade faziam ritos oníricos, projeções astrais e rituais de magia sexual nos templos, sendo figuras poderosas e respeitadas. Hoje, a deturpação do arquétipo da Grande Mãe ainda causa confusão e repulsa à terra, ao sexo e aos ciclos de vida-morte-vida.

Quando Ellen compreende que ela e Nosferatu estão conectados por esse limiar entre-mundos, sendo diametralmente opostos (a lei hermética da polaridade), ela compreende que é através do sacrifício dela que ele poderá ser destruído. Ellen não é virgem, não é ingênua e não é submissa. Ela aparece aqui como uma anti-heroína vitoriana: apesar de sua aparência bela (naqueles padrões, muito magra, pálida, frágil e adoecida, testa larga), ela já foi corrompida pela carne, pela pulsão e pelo contato com o demoníaco, mas, ainda assim, é ela a mártir por excelência em seus próprios termos.


Entre Lilases e Belladonnas


Na grandiosa série Penny Dreadful, somos apresentados à misteriosa protagonista Vanessa Ives. Já nos primeiros episódios, acompanhamos cenas nas quais ela é possuída e performa exatamente o ritual de libertação das amarras vitorianas. O primeiro passo de Vanessa é sempre soltar os cabelos, algo simples mas que funciona com um forte simbolismo naquele contexto: somente o marido poderia ver uma mulher de cabelos soltos na intimidade do lar no século 19. 

Vanessa tem a mesma pulsão sexual e vive no mesmo limiar entre-mundos que Ellen Hutter. Ela comete pecados indizíveis, fruto da tríade de pecados demoníacos da bruxa: ambição, luxúria e infidelidade. Deixando-se consumir pela culpa, inflige a si mesma um enorme sofrimento. Acompanhamos sua internação em um hospício para mulheres e o seu estado de total degradação, próxima à morte. É neste momento que ela também é abraçada pela figura de Drácula, que lhe confere a vazão de toda a força, a magia e o poder até então presos nela como algo ruim, a ser suprimido. Vanessa vive essa relação dúbia entre enxergar essa conexão como maléfica e diabólica e ao mesmo tempo sentir-se em êxtase com todo o poder que poderia experimentar com sua bruxaria.

Miss Ives lendo tarot.
Miss Ives lendo tarot.

Vemos, ao longo da série, que ela desenvolve uma variedade de saberes ocultos, como o uso do tarot, o domínio das ervas, e até mesmo conectar-se por escolha com as energias para ter acesso a informações do passado, do presente e do futuro. Ela também entende que tem nas mãos o poder de acabar com o grande mal, que é o vampiro Drácula, cabendo a ela decidir se será sua noiva em um casamento alquímico apocalíptico ou se será a redentora da humanidade sacrificando-se para salvar a todos.

Um detalhe interessante de ambas as produções é a presença das flores, escolha que enriquece a narrativa com detalhes historicamente corretos. A sociedade vitoriana era tão castradora que até mesmo em um velório era mal visto chorar demais e ter grandes demonstrações de tristeza. As pessoas então criaram mecanismos de comunicação pelos quais pudessem expressar todas essas emoções represadas de forma discreta e direcionada. Um desses mecanismos foi a Linguagem das Flores, com a qual, além das flores físicas, também poderia ser utilizado um desenho da flor ou apenas o nome da flor escrito em um pequeno bilhete, contendo uma informação completa para aqueles que dominassem os significados desta linguagem.


Ellen Hutter com um buquê de lilases.
Ellen Hutter com um buquê de lilases.

Em Nosferatu vemos o uso persistente da flor Lilás (syringa vulgaris), em todo o filme. O primeiro detalhe interessante é que esta flor tem sua origem no Império Persa, seu nome vem do árabe lîlak, por sua vez uma variação do persa nîlak (azulado). Em seu auge, o Império Persa englobou parte do que hoje chamamos de Balcãs, região de onde saiu Nosferatu/Drácula. Lilás é uma flor que tem diferentes tonalidades, entre o branco e azulado bem frio passando por diversas variações de tons de roxo. Cada tonalidade possui um significado específico para os vitorianos.

No longa de Eggers, todas as cenas com flores utilizam a syringa em seu mais clássico tom de Lilás. Na linguagem das flores, elas simbolizam as primeiras emoções do amor, enquanto um campo de lilases indica humildade. Há um tom de pureza de sentimentos, de limpeza dos aromas, da humildade no martírio da donzela. Há também um tom profundo de espiritualidade nas syringas de tom lilás, sendo flores relacionadas ao renascimento, já que são as primeiras a florescer na primavera depois da morte no inverno. Aliás, estas eram as flores que as viúvas carregavam como símbolo da lembrança de seus maridos. Observar Ellen Hutter com um enorme buquê de lilases logo antes da partida de seu amado para o castelo de Nosferatu é uma espécie de prelúdio no longa, bem como o uso das flores para reconhecer o sacrifício da jovem e o renascimento da humanidade, quando distribuídas pelo Dr. Von Franz ao redor dela e do Conde Orlok, mortos no leito. 

Vanessa Ives e Dorian Gray no jardim botânico
Vanessa Ives e Dorian Gray no jardim botânico

Em Penny Dreadful as flores são menos comuns, mas há uma cena muito interessante no jardim botânico de Londres, entre Vanessa Ives e Dorian Gray. Gray é uma das poucas personagens que parecem enxergar as várias camadas de Miss Ives. Por vezes Gray e Ives são, para utilizar uma metáfora da própria série, como os espelhos por trás dos olhos de vidro dos animais empalhados, refletindo a morbidez de seus pactos com o diabo disfarçados de beleza, elegância e vivacidade. Ele dá a entender, em diversos momentos da série, que encontrou em Vanessa sua igual, alguém a sua altura, que o compreende e que o tira da solidão entediante  da eternidade entre mortais frívolos que sequer desconfiam do sobrenatural. 

Ao encontrarem-se casualmente no jardim botânico, Dorian leva Vanessa a uma flor específica e pede que ela a descreve com toda sua verdade. Vanessa se deixa intoxicar pelo aroma daquela flor e, ao descrevê-la, revela o turbilhão que carrega dentro de si. Um discurso intrincado, pois ela fala com uma enorme pulsão de vida sobre uma planta que é uma das mais letais para o ser humano: a Belladonna. Essa flor é obviamente associada à morte e também à traição, mas existe um apelo mórbido de beleza, uma vez que as mulheres a utilizavam como colírio para dilatar as pupilas e, assim, serem mais belas. Outras flores da família Solanaceae figuram a linguagem das flores, como símbolos da verdade (Belladonna Amarga) e da bruxaria (Erva das Feiticeiras), nos permitindo assim amarrar um diálogo que tem caráter de foreshadowing na trama, pois enumera uma série de características de Vanessa Ives que depois serão desenvolvidas.

Em outros tempos, personagens como Ellen e Vanessa poderiam ser grandes bruxas. Se vivessem em um universo que compreendesse o enorme dom que elas possuem, teriam sido educadas e preparadas a lidar com seu poder e a reconhecer espíritos malignos, mantendo-os fora de qualquer tentativa de domínio psíquico. Teriam vivido a sua sexualidade com plenitude e gozo, não sendo limitadas a meras reprodutoras de linhagens masculinas para manutenção da propriedade privada. Teriam trabalhado suas sombras para não serem engolidas por elas. Contudo, apesar de assistirmos a tudo acontecer de forma literal nos roteiros mencionados, essas produções audiovisuais podem ser lidas como alegorias do trabalho de sombras que todo magista deve fazer e do perigo de ignorar essa parte do trabalho.


Integração, Morte e Renascimento


O trabalho de sombras é um dos mais famosos e mais temidos na bruxaria. Como já citado acima, herdamos este medo do sombrio, das pulsões, das nossas ambições e do nosso poder pessoal. Somos ensinados a temer a capacidade de fazer magia, inerente a todo ser humano, nos tornando vítimas de um falso destino, como já disse Jung, sendo dirigidos pelo nosso inconsciente.


A selvagem libertação da anti-heroína vitoriana
A selvagem libertação da anti-heroína vitoriana

As grandes anti-heroínas da era vitoriana, aqui exemplificadas por Ellen Hutter e Vanessa Ives, nos contam a história triste de uma sociedade que não apenas nega, mas impede e sufoca a exploração de tudo aquilo que nos tira da redoma do controle sociocultural. O preço de contestar o status quo é muito alto, sobretudo para as mulheres.

No entanto, estamos aqui, no caminho espiritual da bruxaria e do ocultismo, exatamente buscando o contato e a integração com as nossas pulsões, de vida e de morte, visando sermos finalmente inteiros, finalmente vivermos o êxtase que nossos corpos foram projetados para sentir, finalmente nos conectando com as nossas reais ambições - não aquelas mesquinhas, implantadas para nossa insegurança pelo sistema, mas aquelas verdadeiramente nossas, que nos encaminham para a construção de um legado sólido e de uma vida pungente, liberta.

Neste sentido, as obras de estilo gótico, com um pé no horror ultrarromântico, funcionam como uma enorme catarse para todos aqueles que já se conectaram de alguma maneira a essa realidade da existência e a esse processo de ser capaz de morrer metaforicamente, de entregar-se ao desafio do demônio do abismo para vencer suas ilusões e assim renascer sem medo de si, sem medo dos Mistérios do universo, sem culpa cristã, sem amarras tão sufocantes quanto o corset apertadíssimo que o médico patriarcal receita a Ellen Hutter e sem afogar nas próprias emoções como se fossem os banhos de gelo receitados a Vanessa Ives no manicômio. Só então poderemos renascer no caminho que restaura o arquétipo da Grande Mãe à sua glória para a construção de um coletivo que supera a crise estética e moral que vivemos sob o patriarcado monoteísta.

 


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